Buscando as raízes do Deuteronômio

Um dia desses, eu acordei com fome e resolvi preparar um café da manhã reforçado. Nada sofisticado, mas com nutrientes suficientes para uma boa refeição. Gastei muito tempo para fazer o café, tomá-lo, lavar a louça e organizar a minha cozinha. Levemente irritada, pensei: “Meu Deus, gastei quase duas horas nessa lida”. Finalizando a limpeza, comecei a refletir na importância do cuidado com a alimentação. Para fazer uma boa alimentação é necessário ter um conhecimento prévio para combinar carboidratos, proteínas, gorduras, vitaminas, minerais e fibras. Esse conhecimento nós adquirimos por meio da convivência familiar, de nossas intuições, dos gostos e preferências bem como nas leituras. Nem sempre acertamos, às vezes exageramos, mas em vista da saúde vamos, à medida do possível, equilibrando.

Da comida para a leitura da Bíblia, vivenciamos o mesmo processo. Para ler, saborear, entender um texto bíblico e apropriar o seu espírito, nós também precisamos informações prévias sobre a história do antigo Israel. Quanto mais colocamos nossos pés nesta história, mais conseguimos ler os textos e fazer uma aproximação, tanto quanto possível, do sentido original. Entre nós e os grupos que produziram os textos que estão na Bíblia existe uma distância socioeconômica, política e cultural muito grande, por isso é necessário gastar muito tempo para cozinhar bem um texto e encontrar nele os diversos ingredientes. A leitura da Bíblia é mais agradável quando a fazemos em comunidade. Os olhos de outras pessoas nos ajudam a enxergar melhor os micronutrientes, especialmente quando pensam diferente. O mesmo se pode dizer da comida. Ah, como são agradáveis os nossos cafés e nossas refeições comunitárias. São momentos de fortalecer os laços de amizade e fundamentar projetos.

Nesse processo de cozinhar o texto, constatamos que o livro do Deuteronômio, apresentado como o testamento de Moisés, traz alguns ingredientes fundamentais, tendo como base, ou o macro-nutriente, a experiência do êxodo. É importante ter presente que mais do que narrar o fato histórico, o livro do Êxodo reflete um longo processo de releitura e reinterpretação teológica dos êxodos de vários grupos.

Por volta de 1300 a.C., os grupos de camponeses, pastores, operários, imigrantes, forasteiros, escravos e marginalizados (hapirus – hebreus), que viviam nas planícies, eram explorados e submetidos ao domínio dos reis cananeus das cidades-estado e do faraó do Egito. Esses grupos lutaram por sua liberdade e saíram das planícies para a região montanhosa no centro de Canaã, fora do controle das cidades-estado e do Império. Historicamente, ocorreram inúmeras saídas (êxodos)!

Os grupos de refugiados, em busca de sobrevivência e de liberdade, ingressaram e ampliaram as pequenas aldeias já existentes nas montanhas, ou formaram novos assentamentos para experimentar a vida livre e comunitária do modo de vida tribal. Seus membros viveram um projeto igualitário: partilha e uso comunitário da terra; partilha de bens; lei da solidariedade; assembléia; confederação de tribos na autodefesa dos diversos grupos; culto sem templo, sacerdote e luxo. Assim foi o nascimento do núcleo inicial de Israel, formado pelas pequenas aldeias comunitárias – a sociedade tribal.

A memoria do êxodo se manteve viva não só nas lutas contra os inimigos e opressores externos como o Egito, mas também na luta contra a opressão interna dos próprios governantes. Os profetas de Israel Norte se referiram com freqüência à libertação da escravidão do Egito (Am 2,10; 3,1; 5,25; 9,7; Os 2,17; 8,13; 12,10). O profeta Oséias, por exemplo, relembrou o cuidado amoroso e materno de Javé na experiência do êxodo, uma forma de resistência à imagem oficial de um Deus castigador e centralizador (cf. Os 11,1-4).

No tempo de Oséias, após a morte de Jeroboão II e o crescimento da Assíria no cenário internacional por volta do ano 740 a.C., a situação mudou. Em Israel, surgiram dois grupos: um era favorável à política de aliança com a Assíria e o outro era contra. No período de vinte anos (740-720 a.C.), Israel Norte passou pelas mãos de seis reis, dentre os quais quatro foram assassinados (2Rs 15,1-13). Havia grande instabilidade política. Os reis e seus partidários estavam preocupados unicamente em manter seus privilégios e seu poder, tramando intrigas na casa real e explorando o povo. A religião e seus rituais foram utilizados para explorar, alienar e sacrificar o povo. Daí o grupo de Oséias relembrou o Deus do êxodo: Deus pai, mãe e libertador.

Em 722 a.C., Samaria, a capital de Israel Norte, foi conquistada pelo rei assírio Salmanasar V (726-722 a.C.), e destruída por Sargão II (721-705 a.C.).  Com a guerra, um grande número de pessoas de Israel Norte refugiou para Judá, levando consigo diversas tradições do Norte, incluindo a tradição do êxodo. Há um texto que foi produzido no Norte, levado para Judá, e posteriormente foi acrescentado ao livro de Miqueias, que menciona a saída do Egito: “Escutem, montanhas, a acusação de Javé. Prestem atenção, alicerces da terra: O processo de Javé é contra o seu próprio povo. É contra Israel que ele apresenta a sua queixa: Meu povo, o que é que eu fiz contra você? Em que o maltratei? Responda-me! Pois eu fiz você subir da terra do Egito, o resgatei da casa da escravidão e mandei Moisés, Aarão e Míriam à frente de você” (Mq 6,2-4).

Capa do livro "Entendendo o Deuteronômio".

O texto Mq 6,1-7,7, provavelmente produzido em Israel Norte, apresenta uma situação de violência e de corrupção generalizada em Israel Norte por abandonar a aliança com o Deus do êxodo. Em Mq 6,2-4, Javé apresenta sua fidelidade, recordando a ação libertadora para com seu povo desde a saída do Egito. Nesse texto, a tradição do êxodo é retomada pelos profetas como crítica contra a opressão interna dos governantes.

A mesma tradição do êxodo também é utilizada pelos governantes. Em 716 a.C., Ezequias sobe ao trono de Judá, uma nação afetada pela destruição do seu vizinho Israel Norte e pela ameaça da Assíria, e inicia a chamada “reforma de Ezequias, ou deuteronomista”, para enfrentar a crise. Como orientação da reforma, o grupo de escribas da corte, hoje conhecidos como deuteronomistas, escreve o núcleo de Dt 12-26, que contém os textos que exaltam o povo na luta contra os invasores estrangeiros através da tradição do êxodo: “Quando você sair para a guerra contra os inimigos, ao ver cavalos, carros e um povo mais numeroso do que o seu, não tenha medo, pois com você está Javé, o seu Deus, que o fez subir da terra do Egito” (Dt 20,1). Usa-se a tradição do êxodo para justificar a violência das guerras.

No tempo de Ezequias houve um grande fluxo de refugiados, envolvendo os grupos sociais de estrangeiro, órfão e viúva. Na tentativa de evitar um caos social, a tradição do êxodo é utilizada pelos deuteronomistas com leis de proteção para os pobres (Dt 14,28-29; 16,9-12; 24,17-21). Na passagem de Deuteronômio 26,5-9, lemos: “Então, tomando a palavra você dirá na presença de Javé, o seu Deus: ‘Meu pai foi um arameu prestes a desaparecer. Ele desceu até o Egito, onde passou a habitar com poucas pessoas, e aí veio a ser uma nação grande, forte e numerosa. Os egípcios, porém, nos maltrataram e humilharam, impondo dura servidão sobre nós. Clamamos então a Javé, o Deus de nossos pais, e Javé ouviu a nossa voz. Viu nossa aflição, nosso sofrimento e nossa opressão. E Javé nos tirou do Egito com mão forte e braço estendido, em meio a grande terror com sinais e prodígios. E nos trouxe a este lugar, dando-nos esta terra, terra que mana leite e mel’”.

Embora esses versículos tenham sido escritos muito tempo depois dos acontecimentos, eles apresentam uma síntese bem elaborada da história de Israel. O texto relembra a experiência do povo com o seu Deus libertador que o tirou da escravidão do Egito, dando-lhe a terra e a vida. Esses versículos resumem o livro do Gênesis e a primeira parte do livro do Êxodo. Essa história é sagrada para o povo. Os redatores do Deuteronômio usaram desta memória para legitimar a centralização da festa dos primeiros frutos. Em Dt 26,2 lemos: “pegue das primícias de todo fruto do solo que você trouxer da sua terra e que Javé, o seu Deus lhe dá, coloque-as num cesto e vá ao lugar que Javé, o seu Deus, tiver escolhido para fazer que aí habite o nome dele”.

A festa dos primeiros frutos, celebrada no período da monarquia e no pós-exílio, foi centralizada em um local escolhido. Não é mais nas casas ou em vários santuários (cf. Ex 20,22-26). Em seguida, os versículos 10-11 retoma o motivo de celebrar a festa dos primeiros frutos, recordando que foi Javé que tirou o povo do Egito. O texto associa a ação de Deus com a obrigação de partilhar com o levita e o migrante. Os levitas foram despojados de suas funções sacerdotais no tempo de Ezequias e de Josias (620 a.C.).  Esse grupo passou a viver da caridade (Dt 12,12; 14,27-29; 16,11-14; 26,11-14) ou trabalhar como cantores, porteiros e até escribas no templo de Jerusalém (Dt 18,6-8).

Como podemos constatar, a tradição do êxodo foi usada pelos grupos proféticos para defender a vida dos mais pobres e também pela classe governante para aumentar o poder político e econômico das elites governantes. Em nome de Deus quantos projetos opressores foram e são realizados no decorrer da história da humanidade. Na oração do Angelus, no dia 9 de agosto de 2020, o Papa Francisco disse: “Deus não precisa ser defendido por ninguém e não quer que seu nome seja usado para aterrorizar pessoas. Peço a todos que parem de instrumentalizar as religiões para incitar ao ódio, à violência, ao extremismo e ao fanatismo cego”.

Na cozinha, como na Bíblia, é preciso gastar tempo. Cuidar dos vários fios que formam um texto, ter uma atenção especial aos macro e micronutrientes. Além do êxodo, há outros fios que estão nas linhas e entrelinhas do texto. Como seguidoras e seguidores de Jesus de Nazaré, somos chamadas e chamados a descobrir as marcas do movimento profético presentes no livro do Deuteronômio, que deram sustentação para a sua. O Deus do êxodo, revelado em Jesus de Nazaré, continua nos convocando para ver vendo, para descer e colocar os pés na realidade que vivemos e a partir do lugar social de cada uma e de cada um dar a nossa resposta. Eis aí o nosso desafio!

Maria Antônia Marques – Assessora do Centro Bíblico Verbo e Professora no ITESP.

As informações sobre o Êxodo foram extraídas do livro “A Lei a favor da vida? Entendendo o livro do Deuteronômio, p.36-44. São Paulo: Paulus, 2020.